Em outubro de 1919, Franz Kafka despertou de sonhos intranquilos e abriu uma carta.
O escritor tinha 35 anos e já havia conquistado algum respeito nos círculos literários de Praga. Tinha publicado, por exemplo, A Metamorfose. Nesse papel alguém lhe pedia a permissão para traduzir seus textos do alemão para o tcheco.

Quem escrevia era Milena Pollak que, por dificuldades financeiras, iniciava a carreira de jornalista e tradutora. Em fevereiro do ano seguinte, Milena começou a traduzir os textos de Kafka. Em abril, trocavam cartas quase diariamente. Milena passava por uma crise existencial e conjugal; Kafka se internaria num sanatório por causa da tuberculose. A relação deles se aprofundaria mais e mais, apesar de terem se visto apenas duas vezes na vida.
“Quase me decepcionei ao retirar do enorme envelope a revista contendo a sua tradução. Eu queria ouvir notícias de Milena, não aquela voz por demais conhecida saída do velho túmulo. Por que ela foi se meter entre nós? Até que me ocorreu: foi também essa voz que intermediou nossa relação. Mas de resto me é incompreensível que tenha tomado para si esse trabalho enorme, e profundamente tocante é a fidelidade com a qual, frase a frase, conseguiu realizá-lo – uma fidelidade, cuja possibilidade e cuja bela e natural legitimidade eu supunha impossível de se obter em tcheco. Alemão e tcheco, tão próximos um do outro? Seja como for, O foguista é de uma ruindade abissal, e eu poderia lhe demonstrar isso com facilidade incomparável, cara Milena, praticamente linha a linha, se minha repulsa não acabasse sendo um pouco mais forte do que as evidências. O fato de que goste da minha história é evidentemente algo que a valoriza, embora me turve um pouco a imagem do mundo.”
Sempre acho fascinante que a história de amor entre os dois começou por meio da tradução. Milena leu Kafka e gostou tanto que quis traduzir para que outros o pudessem ler também. Por sua vez, Kafka deve ter se sentido profundamente compreendido nas traduções dela. Em determinada correspondência, ele pede que lhe escreva na sua língua natal:
“Claro que entendo o tcheco. Já quis lhe perguntar por que não escreve em tcheco ao menos uma vez. Não porque não domine o alemão, domina-o e no geral de forma estupenda, e se alguma vez não o dominar, é ele que se curvará de boa vontade à sua frente, o que seria especialmente belo, já que um alemão não ousa esperar isso da própria língua, não ousa escrever de forma tão pessoal. Mas eu gostaria de lê-la em tcheco porque Milena pertence a ele, porque é só no tcheco que ela se encontra por inteiro (a tradução o comprova), aqui nas cartas afinal só está a Milena de Viena ou a Milena que se prepara para Viena. Portanto em tcheco, por favor.”
Se você pega as correspondências para ler em ordem cronológica, percebe logo o “Prezada senhora Milena” virando “Querida Milena”. Quando já há intimidade o suficiente, Kafka se abre em relação a sua infância e família. Ele se revela por vezes bem humorado e charmoso, muito diferente do que imaginaríamos lendo apenas as obras de ficção que escreveu.
Milena nunca conseguiu deixar o marido, o que fez com que Kafka colocasse um fim na relação entre os dois. Em 1924, ele morre por complicações decorrentes da tuberculose. Ela continuaria traduzindo diversas obras, inclusive as dele pro tcheco. Em 1939 com a ocupação nazista, é presa pela Gestapo e deportada para o campo de concentração para mulheres de Ravensbrück. Em 1944, foi morta. Mas conseguiu salvar as cartas que recebeu, apesar dele ter pedido que elas fossem destruídas.
“Querida Milena,
Eu queria que o mundo acabasse amanhã. Então eu pegaria o próximo trem, chegaria na sua porta em Viena e diria: ‘Venha comigo, Milena. Vamos nos amar sem escrúpulos ou medo ou receio. Porque o mundo acaba amanhã.’ Talvez as pessoas não amem irracionalmente porque pensamos que temos tempo, ou que temos que contar com o tempo. Mas e se não tivermos tempo? Ou se o tempo, como nós entendemos, for irrelevante?”

Praticamente tudo que sabemos da relação de Milena e Kafka foi dito pelas palavras dele. A maioria das correspondências que temos acesso são as que Milena recebeu, poucas das que ela teria enviado a ele. Antes de morrer Kafka teria dito ao seu melhor amigo Max Brod que queimasse todo o seu trabalho, rabiscos, rascunhos e cartas recebidas.
Max queimou, sim, as cartas de Milena.
Mas pouco depois da morte do amigo, editou e publicou alguns dos seus manuscritos, como O Processo. Em 1939, quando a invasão nazista chegou a Praga, Max Brod escapou com uma mala inteira só de papéis, manuscritos, diários e desenhos de Kafka.
Foi após sua morte que a obra de Kafka se tornou mundialmente conhecida, pelo esforço de Brod em editar, publicar e divulgar o que ele escreveu. Mas isso também foi fruto de uma traição. Pela arte, você trairia um pedido do seu melhor amigo?
Kafka morreu com apenas 41 anos, deixando obras não finalizadas e muito ainda por dizer. Talvez tenha sido por isso que Brod se viu incapaz de destruir o pouco que havia sido dito. Após a morte dele, os 22 anos de amizade o colocaram em um dilema. Você conseguiria queimar a arte do seu melhor amigo?
Max Brod se defendeu em entrevistas dizendo que se Kafka realmente quisesse que tudo fosse destruído, não o teria escolhido como o responsável por realizar esse pedido. Kafka, portanto, teria transmitido esse desejo a uma pessoa que ele sabia que nunca teria a coragem para cumpri-lo.
Mas Brod não publicou apenas histórias incabacadas, ou que Kafka gostaria de retrabalhar, editar, ele também publicou seus diários e suas cartas pessoais. Publicou até mesmo a carta que Kafka escreveu ao pai e nunca teve coragem de enviar. (“Carta ao Pai”, que aliás, meses depois que escrevi esse parágrafo aqui acabou se tornando o nome do meu quadrinho)


Me parece um pouco imoral admitir que sou muito fascinada por cartas e diários de artistas. Quando era adolescente começava a ler os diários e as cartas de alguém e ao me ver encantada pela pessoa, finalmente iria pra sua obra.
Dos doze aos quinze anos, li e reli as cartas de Caio Fernando Abreu. Quando Caio escreveu pro seu amigo José Marcio Penido (o Zézim), direto do Porto em dezembro de 79, jurei que na verdade ele estava era falando comigo:
“Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, “apaga o cigarro no peito! diz pra ti o que não gostas de ouvir! diz tudo”. Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a “função social”, nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.”
Caio era o que alguns acadêmicos chamam de “epistolista”, pertencendo a última geração de escritores brasileiros que ainda escrevia cartas. Ele se aproveitava desse espaço confessional para escoar o seu estilo redigindo até 5 por dia para pessoas diferentes, ainda que soubesse que poderia não ter resposta alguma.
A correspondência dele com Hilda Hist, por exemplo, cujas cartas começam no final da década de 1960 e vão até o início da década de 90, são sobretudo de Caio pra Hilda. Há apenas uma carta e um bilhete de Hilda para Caio de que temos o registro. Na carta em que ele se despede para o exílio, no auge da ditadura militar, Caio escreve para ela isso aqui:
“Há muito tempo, uns dois meses, mandei para você um recorte de jornal, com uma matéria minha sobre o Lúcio Cardoso, onde eu falava em você. Sei lá se chegou ou não, mas de qualquer maneira acho que você poderia ter escrito. É uma coisa que me dói muito, esses seus silêncios. Sei — claro — que você deve ter problemas bastante sérios, mas uma carta de vez em quando não custa nada e, às vezes — quem sabe? — talvez até a gente pudesse ajudar. Penso, com mágoa, que o relacionamento da gente sempre foi um tanto unilateral, sei lá, não quero ser injusto nem nada — apenas me ferem muito esses teus silêncios. A sensação que tenho é que você simplesmente não está a fim de transar muito — e cada vez que tomo a iniciativa de escrever, é sempre meio tolhido, sem naturalidade, com medo de incomodar, de ser indesejável. Não é uma coisa agradável. Seja como for, continuo gostando muito de você — da mesma forma —, você está quase sempre perto de mim, quase sempre presente em memórias, lembranças, estórias que conto às vezes, saudade. E se é verdade que o tempo não volta, também deveria ser verdade que os amigos não se perdem. Eu não gostaria de acreditar nisso.” — Porto Alegre, 27/03/1973
Enquanto as cartas de Caio foram publicadas em coletâneas e debatidas em teses acadêmicas, o mesmo não aconteceu com seus diários, 8 cadernos de 1964 até 1996 (o ano em que morreu). As irmãs e herdeiras do escritor doaram o acervo para a PUC-RS com a exigência de que nada poderia ser divulgado ainda. Elas defendem que mais do que a privacidade do próprio Caio, há inúmeras menções a pessoas ainda vivas por lá.


Dos dezesseis aos vinte, eu usei os diários da intelectual Susan Sontag de forma oracular — lendo o dia respectivo em que eu estava de qualquer ano que ela tivesse escrito algo. Até hoje não sei exatamente o que foi que me levou a comprar dois volumes dos diários de uma escritora que eu nunca tinha lido antes, mas suspeito que era um conhecimento vago de que ela era uma intelectual queer.
O primeiro registro seu no diário é aos 16 — no mesmo ano em que consegue uma bolsa na Universidade de Chicago — e o último aos 47 quando já havia publicado, por exemplo, o Ensaios sobre a Fotografia.
No prefácio do primeiro volume dos Diários editado pelo filho de Sontag, David Rieff , ele confessa sua incerteza em relação a decisão de publicar os diários da mãe. David revela que quando Susan morreu, não havia nenhuma instrução sobre o que fazer com as dezenas de cadernos que ela mantinha dentro de um armário no quarto.
Os diários da Sontag revelam sua sexualidade de uma forma que ela nunca se sentiu totalmente confortável para expôr publicamente em vida. Na véspera de ano novo de 1957 em Paris, aos 24, Susan escreve isso aqui:
“Uma das principais funções (sociais) de um diário é justamente ser lido furtivamente por outras pessoas, as pessoas (como pais + amantes) sobre as quais se foi cruelmente honesto apenas no diário. Será que algum dia H. lerá isso?
“H” é Harriet Sohmers, com quem Susan se envolveu quando era adolescente em Berkeley. Depois disso, veio “I”, a dramaturga María Irene Fornés que, antes de se envolver com Sontag, era ela mesma namorada de Harriet.
Em 24 de dezembro de 1959, mesmo ano em que ela se divorcia do professor Philip Rieff com quem casou aos 17, escreve:
“Meu desejo de escrever está ligado à minha homossexualidade. Preciso da identidade como arma, para corresponder à arma que a sociedade tem contra mim.
Isso não justifica minha homossexualidade. Mas isso me daria – eu sinto – uma licença.
Estou apenas me conscientizando de como me sinto culpada por ser queer. Com H., pensei que não me incomodava, mas estava mentindo para mim mesma. Deixei que outras pessoas (por exemplo, Annette) acreditassem que H. era meu vício, e que sem ela eu não seria queer, ou pelo menos não seria principalmente.
Ser queer me faz sentir mais vulnerável.”
É curioso observar que apesar dela nunca ter falado publicamente sobre suas relações com várias artistas mulheres (além das que já citei, há ainda Lucinda Childs e Annie Leibovitz), esses relacionamentos inevitavelmente afetaram profundamente seu trabalho. Dois de seus ensaios mais famosos lidam com temas relacionados a experiência queer, como “Notes on Camp” e “AIDS and Its Metaphors”.
“Na ‘vida’, eu não quero ser reduzida ao meu trabalho. No “trabalho”, eu não quero ser reduzida a minha vida.
Meu trabalho é muito rígido
Minha vida é uma anedota brutal”
— 15 de março de 1973

Esse aqui estava todo empoeirado nos meus rascunhos há praticamente 2 anos porque fiquei reescrevendo a segunda parte de tempos em tempos (quando vai aparecer por aqui? bom, não dá pra saber ainda). Vi o filme biográfico sobre Kafka sexta passada no Festival do Rio, abri um novo diário recentemente então decidi que chegou a hora.
Obrigada por ler.

Deixar mensagem para Clélio Cancelar resposta