No início do ano fui a praia do Leme com um casal de amigos. Estava ali, nadando tranquilamente, conversando com Carlos quando veio uma onda enorme que me deu um caixote. Deve ter durado uns dois minutos mas na minha cabeça foram dez intermináveis. Lembro de girar várias vezes dentro do mar e falar para mim mesma que eu podia aguentar mais um pouquinho, segurando a respiração o máximo que podia.
Hoje sei exatamente o que deu errado. Não pedi licença antes de entrar ali. Odoyá Iemanjá. Nas religiões de matriz africana é recomendado que ao adentrar o mar você reverencie a orixá que rege aquelas águas.
Lembrei disso lendo sobre a crença de criação do mundo dos guarani numa madrugada após os incêndios na Amazônia. Muitos indígenas falam da importância de pedir licença as árvores antes de entrar na floresta.
E agradecer ao sair.
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“No primeiro tempo, quando a floresta estava ainda jovem, nossos antepassados eram humanos com nomes de animais e acabaram virando caça. São eles que flechamos e comemos hoje. Mas suas imagens não desapareceram e são elas que agora dançam para nós como espíritos xapiripë. Estes antepassados são verdadeiros antigos. Viraram caça há muito tempo mas seus fantasmas permanecem aqui. Têm nomes de animais mas são seres invisíveis que nunca morrem. A epidemia dos brancos pode tentar queimá-los e devorá-los, nunca desaparecerão. Seus espelhos brotam sempre de novo.” — Davi Kopenawa Yanomami
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Estudei dos seis aos quinze anos em uma escola construtivista adepta de Paulo Freire e fortemente influenciada pela filosofia tupi-guarani. As turmas de crianças são batizadas com nomes de tribos existentes no Brasil no maternal e seguem com esse nome até se formarem no ensino fundamental. Quem nomeia a turma que chega é a que está se formando. Nunca existem nomes repetidos. A minha se chamava Suyá.
Na secretaria do colégio havia essa foto enorme enquadrada na parede da Huyra Guajá amamentando um filhote de porco-do-mato enquanto segura um bebê no colo.

Se alguém da tribo Guajá caça um animal e percebe que é uma fêmea que tem filhotes, leva os bebês para a aldeia e mulheres que estão amamentando também os alimentam. Assim os animais não morrem de fome, crescem e a tribo ainda terá caça no ano seguinte.
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Nos dias em que faço home office e não piso fora de casa, não vejo a luz do sol; em dias de final de semana que não tenho rolê, acordo tarde e fico maratonando série, antes de dormir começo a sentir uma angústia no peito e penso ‘lá vem a depressão’, mas no dia seguinte quando saio na rua, pego sol e vejo as árvores concluo: ‘ontem você devia ter respirado o ar mesmo que fosse da sua janela’.
A mãe-de-santo disse para tomar banho de cachoeira pelo menos uma vez por mês e que quando viesse uma ventania ou tempestade devia saudar Iansã. Eu não lembro qual foi a última vez que eu entrei numa cachoeira mas é verdade que quando tem uma ventania eu ando mais devagar e converso com ela.
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Eu deixei que morressem todos os temperos que minha mãe plantou. Assim como esqueço de almoçar, esqueço de regar as plantas. Então quando decido finalmente cozinhar sou obrigada a ir ao mercado e comprar um ramo inteiro de manjericão mesmo que vá usar só um pouquinho.
A única planta que resistiu aos meus dois anos morando sozinha aqui é a mesma que existia no quintal da minha bisavó. Quando começava a me descuidar, logo escutava dentro da cabeça a voz da minha mãe lembrando de pôr água na terra.
Se minha bisa não deixou morrer, se minha vó não deixou morrer, se minha mãe não deixou morrer, ela sobreviverá a mim.
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O que diz sobre a nossa sociedade o fato de existir uma multinacional predatória chamada ‘Amazon’ no endereço amazon.com e não uma página sobre a preservação da maior floresta tropical do planeta?
Quem patrocina o desmatamento na Amazônia são empresas de soja e carne bovina cujos nomes conseguimos achar tranquilamente. E tantas outras marcas que compram dessas empresas e vendem carne, óleo de palma, soja, papel para nós.
As iniciativas individuais são ineficazes, na medida em que não basta apenas dizer ao que nós nos opomos. É preciso construir uma alternativa coletiva.
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Chico Mendes foi um líder seringueiro, militava em favor do desenvolvimento sustentável e denunciava fazendeiros que expandiam o pasto derrubando floresta no Acre. Ele impedia o avanço de tratores com famílias inteiras de seringueiros, castanheiros, indígenas, pequenos pescadores, quebradeiras de coco e ribeirinhos sentados de forma organizada próximo das máquinas.
As ameaças de morte se intensificaram quando Chico teve contato direto com o Banco Interamericano de Desenvolvimento e com o Senado norte-americano e denunciou a exploração com recursos estrangeiros. Quando o fluxo de dinheiro diminuiu, assassinaram Chico Mendes na varanda de casa.
Na última entrevista que deu disse que como mártir não serviria de nada, que queria viver.
Um ano depois da sua morte, por pressão da comunidade internacional e organizações brasileiras, o Ibama foi criado.
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Eu já tive uma vaca. Quando era criança passava férias no sítio da família do meu pai, na serra da Moeda em Minas Gerais. Em uma noite dormindo lá, uma bezerrinha nasceu. Eu e minha prima fizemos uma aposta: quem acordasse no dia seguinte antes da outra poderia dar um nome a ela.
Eu acordei 5:30, derrotei Marina e portanto pude nomear a bezerra de Pintada.
Lá a gente ia na cachoeira todo dia. Tomávamos leite fresco com nescau, fazíamos queijo e comíamos ovos caipiras trocados pelo nosso leite com o vizinho. Fico pensando se ter a Pintada foi o que me fez decidir, muitos anos depois, parar de comer carne. Mas continuo tomando leite, comendo queijo e ovo.
Se houvesse um cenário alternativo em que todos só pudessem comer os animais que matassem com suas próprias mãos, ainda haveriam muitas e muitas pessoas que continuariam se alimentando de carne. Mas é a existência de uma indústria ao redor disso, uma indústria que não está preocupada nem com a qualidade do alimento que oferece menos ainda com as condições dignas do animal que abate, que possibilita o distanciamento entre animal e humano necessário para que uma pessoa coma carne em todas as suas refeições diárias.
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“Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Nós guardamos as palavras dos nosso antepassados dentro de nós há muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem nada dos espíritos, escutam os cantos do xamãs e depois querem ver os espíritos por sua vez. É assim que, apesar de muito antigas, as palavras dos xapiripë sempre voltam a ser novas. São elas que aumentam nossos pensamentos. São elas que nos fazem ver e conhecer as coisas de longe, as coisas dos antigos. É o nosso estudo, o que nos ensina a sonhar. Deste modo, quem não bebe o sopro dos espíritos tem o pensamento curto e enfumaçado; quem não é olhado pelos xapiripë não sonha, só dorme como um machado no chão.” — Davi Kopenawa Yanomami
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Obrigada por me ler.
