
“Quando for velhinha, eu vou achar muita graça disso”. Essa é a frase que penso no meio de todo drama em que eu me envolvo. “Agora está tudo horrível mas daqui a alguns anos vou rir demais de como tudo dava errado, como eu achava que não seria amada, que não conseguiria nada do que eu quero, etc, etc”.
Então me imagino idosa cercada de pessoas que eu amo, fazendo piada de todas as coisas horríveis que já me aconteceram apenas para ver todas elas rindo alto.
No meu hall de histórias para mesas de bar tem a vez que eu fui mordida no rosto por uma cachorra; um acidente de avião em Natal (RN); quando bêbada muito educada fui vomitar no banheiro do bar, tropecei no degrau dele e dei de cara num balcão de mármore.
Não falo da semana seguinte, da dor, da cicatriz, do quase-trauma quando vejo cachorros sem coleira na rua. Falo do ridículo da situação, a cachorra abanando o rabo atrás de mim pela casa enquanto eu sozinha tentava estancar o sangue da bochecha.
“Eu não sou um cachorro! Você não pode me morder quando bem entender e depois fingir que nada aconteceu, Kika!”, simulo que discuto com ela. Todos riem. Mas na hora mesmo eu não falava nada. Estava tentando não entrar em pânico.
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Meses atrás enviei um áudio durante uma discussão com meu ex. Essa frase já parece toda errada desde o início, mas continue comigo. Falei o que aparecia na cabeça sem muito critério, em um rompante de sinceridade sobre como me sentia:
“Você está certo, eu devo ser idiota. eu vou chegar em algum lugar e dizer: ‘por favor, me ajuda porque eu sou BURRA! Eu falo de uma maneira, eu organizo as ideias de uma maneira que parece que eu sou inteligente mas na verdade eu sou BURRA’, porque só uma pessoa burra para insistir em ser continuamente enganada por você e pensar: nããão, ele se importa sim”
Logo depois enviar, fui ouvir para conferir que não falei nada errado. Foi aí que comecei a gargalhar sozinha: nada fazia o menor sentido. Quer dizer, a sensação sim. A sensação de otária era real. Mas ele nunca havia dito explicita ou implicitamente que eu era burra. Pelo contrário.
Enquanto ele respondia a sério tudo o que eu tinha acabado de dizer, tive que interromper e declarar que não conseguia parar de rir do meu áudio.
“Mas por que?”, me perguntou.
“Porque estava com raiva e falei essas coisas absurdas”.
E a raiva sumiu. Quem dera toda vez que eu estou sofrendo muito por algo, conseguisse ver o ridículo da situação e assim ela sumisse. Costuma acontecer mesmo só muito tempo depois.
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Tive um relacionamento de quatro meses com alguém que me perseguiu ativamente os dez anos seguintes.
Entre muitas ocorrências surreais, gosto dessa: morando em uma rua paralela a minha, ele corria de madrugada com um app da Nike que compartilhava seu trajeto no Facebook. Escolhia sempre dar voltas e mais voltas na minha rua das duas às quatro da manhã.
Parece ruim. Foi péssimo.
O que me fez sobreviver, mas podia ter tido conseqüências gravíssimas e por isso não indico, foi nunca levar realmente a sério nada que vinha dele.
Criei uma tradição com amigos meus: nos reunimos, um deles lê posts selecionados pelos outros desse meu ex em redes sociais com a voz do Marcelinho-dos-contos-eróticos da maneira mais debochada que puder e a gente ri até ficar sem ar.
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Assisti essa série no início do ano, Marvelous Mrs Maisel, sobre uma dona de casa da década de 50 em Nova York que ousa fazer comédia stand-up. A primeira temporada é boa, mas a segunda se supera.
Em um episódio dela, Midge (nossa protagonista) entra no palco irritada com um grupo de homens comediantes que se apresentaram antes dela:
“A única coisa que me sinto preparada para arrasar agora, neste exato minuto, são aqueles perdedores no bar. Apenas parados lá, esperando por mim para me ver fracassar. É meia noite em uma terça-feira e o destaque de sua noite é a possibilidade de ver uma garota falhar. Eu deveria achá-los intimidantes? Porque tudo que vejo é um grupo de homens que tiveram que entrar na comédia só para transar”.
Depois de sacanear cada um individualmente, ela se volta para a questão mais importante: por que todo mundo insiste que as mulheres não são engraçadas?
“Todos os humoristas são humoristas porque algo em suas vidas deu terrivelmente errado. Algo deu merda. Os homens pensam que são os únicos que conseguem usar a comédia para fechar os buracos em suas almas, correm por aí dizendo a todos que as mulheres não são engraçadas. Só homens são engraçados. Agora pense nisso. A comédia é fomentada pela opressão: pela falta de poder, a tristeza e a decepção, o abandono e a humilhação. Agora quem diabos descreve isso mais do que as mulheres? Julgando por esses padrões, apenas mulheres devem ser engraçadas!”

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Estava eu na análise, há muitas sessões passadas, falando sobre algumas frustrações minhas a respeito de amigos meus. Algum tempo depois eu reclamei de alguma coisa que alguém interpretou como piada mas era sério. Meu analista disse:
— Mas você é engraçada
— Sou?
— Sim, agora mesmo lá atrás quando você disse: ‘eu estou cercada de gente privilegiada’ e tal
— Meu deus do céu, mas eu estou!!!
*** [Notas de rodapé]
1. Oi gente, quanto tempo. Demorei para escrever de novo porque na verdade eu desisti de tudo e nesse tudo estava incluído escrever e desenhar. Foi uma crise boa, eu recomendo desistir das coisas para avaliar se você realmente quer o que você diz que você quer ou se só acha que é o que devia querer. Também recomendo ver a filmografia da Agnès Varda para curar a crise.

2. Aconteceu algo muito bonito: a Sofia Soter leu um texto daqui no seu podcast Chá da Tarde. Ouvi a primeira vez sem fones dentro do metrô, tendo que apertar o celular contra a orelha e dei uma choradinha em público. Um dia antes comentei num date como eu achava que podcasts te dão uma sensação de tal proximidade com o emissor que o texto nunca atinge. E eu acho que esse texto em específico merecia essa sensação, essa voz chorosa da Sofia, essa intimidade mesmo que calculada. Ouçam o podcast (tem no Spotify). Obrigada Sofia de novo. Foi muito muito importante pra mim.
3. Queria fazer umas indicações, a gente tem tempo ainda? Segue a lista:
– Podcast da Aline Valek. É realmente muito difícil não se apaixonar pela Aline.
– A buraquinha, uma newsletter de autoentrevista com mulheres que criam, ideia da yamakat. Pretendo participar em breve então sugiro que vocês se inscrevam.
– Descobertas da semana, newsletter da Aline Ramos, que não é exatamente toda semana mas vale muito a pena esperar pelo disparo.
– Tipo Aquilo do Cadu Carvalho, é uma newsletter especializada para quem se interessa por tipografia e design.
Na próxima eu indico mais. Obrigada por me ler.
