ARTE NAIF
Meu pediatra tinha o consultório repleto de quadros grandes que ele mesmo pintava. Eram bem coloridos com muitas pessoas ocupando cenários festivos típicos do regionalismo brasileiro. Lembro de ficar um bom tempo encarando as obras, tentando ter a certeza de que reconhecia cada pessoínha, como se olhasse um livro de Onde está Wally.
Naquela época ele me disse que aquilo era “arte naif” mas não explicou o que significava. Foi só muito tempo depois pesquisando na internet que descobri que os artistas naif não foram reconhecidos pelas instituições formais como artistas de verdade por um tempo pois a existência desse gênero se dava justamente na ausência de aprendizado técnico e clássico desobedecendo uma série de regras formais que existiam na pintura.
O reconhecimento da arte naif foi uma consequência da democratização nas relações entre artistas e sociedade porque era uma prova de que qualquer um tem o direito de se expressar artisticamente e que as escolas de arte não são garantia de valor artístico já que arte que pode ser criada fora delas.
Na arte naif não há o uso da perspectiva, por exemplo. Outras características suas são cores fortes, temas alegres, traços figurativos, a idealização da natureza e tendência a simetria.
Se você reparar bem todo desenho ou pintura que uma criança produz é arte naif. Percebi agora, enquanto escrevo, que meu pediatra foi um gênio pois botou nas paredes quadros seus que os pacientes também poderiam fazer.
Telmo, esse é meu agradecimento.

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BRIGITE
Na minha família materna todo mundo chama vagina de brigite.
Até os 8 anos eu achava que todo mundo chamava vagina de brigite também. Quando um coleguinha no meio da sala de aula me perguntou sorridente se podia apertar minha brigite, entrei em pânico sem saber o que responder até ele apertar a parte gordinha do meu braço acima do cotovelo. Na familia dele brigite devia ser isso.
Tempos depois eu descobri que brigite era, em sua origem, um nome próprio e experimentei o mesmo efeito levemente cômico de quando conheci alguém que se chamava Xana.
Quando percebi que ninguém que eu conhecia trocava vagina por brigite perguntei a minha família qual era a justificativa e a resposta foi: “um dia sua avó foi ver um filme da Brigitte Bardot no cinema. ao vê-la em uma cena pelada com o bumbum exposto falou ‘que bardot! mas não mostrou a brigite’.”
Essa história sempre é repetida incansáveis vezes pra provocar risadas nas conversas onde a pauta é lista de momentos da minha avó sendo hilária mas nunca contém mais detalhes. Só agora eu comecei a me perguntar: tá, mas que filme foi esse? Onde ela viu? E quando?
Queria ter me interessado mais pelas histórias da minha avó quando ela estava viva, porque o que me restou nesse momento é coletar relatos de terceiros, remontar indícios e fragmentos do que acho que pode ter sido, sem nunca poder confirmar tudo.
Busquei no google qual filme a Brigite Bardot estrelou que teve sua bunda filmada. Todos os resultados apontaram para O Desprezo (Le Mépris) do diretor francês Godard. Em O Desprezo um escritor é contratado por um produtor de cinema para aprimorar seu roteiro de uma adaptação da Odisséia de Homero. Quando o produtor é apresentado a esposa do escritor, a personagem de Brigitte Bardot, ele convida o casal para ir a sua mansão mas sugere que ela vá com ele em seu carro e o marido de táxi. Ela por sua vez quer acompanhar o marido, mas ele insiste que ela vá com o produtor. A partir dessa situação o casamento deles começa a desmoronar.
Foram os produtores americanos que insistiram pela colocação da cena de nudez no início do filme, que Godard havia retirado na primeira montagem. Era um apelo voyeurista para o público masculino já que a atriz era considerada um sex symbol da época.
A descoberta que minha vó teria visto um filme do Godard já seria chocante o suficiente pra mim. Na minha ignorância nem considerei que filmes que hoje são tidos como cult eram filmes comerciais que passavam no cinema. Mas resolvi pesquisar mais a fim de descobrir quando ela teria visto e onde.
O Desprezo é de 1963 mas só chegou aos cinemas brasileiros em 1969. Por conta dessa demora, foi censurado pela Ditadura Militar e sofreu cortes na sua exibição. Posteriormente a Rede Globo até tentou exibi-lo na TV e ele foi interditado duas vezes em 74 e 77 mesmo com pedidos de reconsideração e cortes por parte da emissora.
O primeiro artigo que li, de Luiz Octavio Luiz Gracini Ancona, sobre como a Ditadura Militar lidou com os filmes do Godard dizia que a cena inicial de Bardot nua de costas teria sido cortada, o que era de se esperar. Mas como raios a minha avó assistiu o filme sem estar censurado e ainda no cinema? Em 69, minha mãe tinha onze anos. Minha vó tinha mais dois filhos além dela, ambos na faixa dos vinte. Era dona de casa, não estudava e não trabalhava por imposição do meu avô. Não faria sentido ela ter acesso subversivo a um filme francês.
Continuei procurando e em outro artigo, esse de Meize Regina de Lucena Luca mais embasado e com fontes bem apontadas, descobri que o censor disse que as cores fortes e a posição estática poderiam qualificar a nudez de artística então não haveria a necessidade do corte dessa cena. No entanto o mesmo censor orientou o corte do momento em que a iluminação fica normal com luz branca ou amarelada na mesma sequencia.
Sendo assim a minha avó não viu a bunda de Brigitte Bardot. Ela viu apenas a bunda colorida de Brigitte Bardot.
E ninguém viu sua brigite.

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PALCO
Quando eu tinha uns 7 anos fiz aula de teatro na escola e isso durou até os 13. Foi com essa idade que uma peça que montamos participou de um festival competitivo na Ilha do Governador. Encenamos e deu tudo certo. Mas logo depois um grupo de jurados criticavam as apresentações e escolhiam a premiada.
Ao criticar a nossa peça, disseram que uma “menina gordinha” não poderia usar aquele figurino (o mesmo do grupo inteiro, short e camisa beges) porque era indecente e inadequado.
Essa menina era eu e ela parou de atuar.
Mês passado fui em uma montagem do Felipe Hirsch no Oi Futuro. Atores muito bons, textos muito bons. Uma hora o Guilherme Weber ficou pelado e a última coisa que você pensa é em julgar o pinto dele.
Teve um momento que chamaram a platéia pro palco. Nós fomos. Mas o cenário era repleto de colchões até as paredes. Então era um palco disfarçado de cama. Você sentava ali nas beiradas, encostava em algum canto e assistia os atores encenando matadores de aluguel que viraram atores e estão contando uma história.
Com 15 anos fui vocalista de uma banda rock composta só de homens. Durou um tempo, subimos em palcos altos e palcos pequenos. Um casal com a idade da minha mãe me pediu autógrafo no shopping e eu fiquei nervosa. Quando começamos a ficar relativamente conhecidos, eu larguei.
Eu percebi que tinha medo do sucesso.
Ainda tenho.
O sucesso implica que você inevitavelmente vira uma entidade abstrata “Joanna Maciel ilustradora designer quadrinista agora escritora ex-cantora talvez diga só artista feminista” e deixa de ser a Joanna que chora de cansaço quando chega do trabalho.
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EXPOSIÇÃO
Fui convidada para expôr minhas artes (e vendê-las!) nessa sexta-feira, Dia Internacional da Mulher, no bar Yeasteria na Tijuca (Rio de Janeiro) das 18h até 1h da manhã. (Isso não parece um convite, mas é. Toma uma cerveja comigo!)
O processo de curadoria foi horrível e solitário. Eu podia ter pedido ajuda, até ensaiei pedir ajuda. No final o que teremos lá é um apanhado bonito de quem eu era e uma pista de quem eu ainda não sou.
Também tive uma crise nervosa em um final de semana que não conseguia fazer nada, só chorar. Agora eu estou nessa beirada entre achar que tudo vai irremediavelmente dar errado e me lembrar que na verdade as coisas tem dado certo.
A exposição é dar certo, né?
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[NOTAS DE RODAPÉ:]
1. Telmo se aposentou da medicina e hoje é pintor naif full-time. Em 2011, fez um mural na sala de espera do setor pediátrico do Instituto Nacional de Cardiologia:
“O painel foi feito com grande interação com os médicos, funcionários do hospital, as crianças que passavam por lá e seus familiares. Um chegava e dizia: ‘Essa igrejinha que você pintou está tão bonita, quero me casar aí’. E eu pintava um casamento. É meu trabalho mais bonito”, diz ele.
2. Os artigos que cito em Brigite:
A censura cinematográfica no Brasil: o caso dos filmes de Jean-Luc Godard de ANCONA, Luiz Octavio Gracini.
A tessitura dos fios de Ariadne: arquivo e censura cinematográfica no Brasil de LUCA, Meize Regina de Lucena.
3. A peça do Felipe Hirsch é a ‘Antes que a definitiva noite se espalhe em Latino América’. Para quem é do Rio, vai ter outra temporada no Teatro Sesi Jacarepaguá agora no final do mês.
4. Convite formal:
Exposição (e venda!) no evento do Dia Internacional da Mulher
Bar Yeasteria
R. Pereira Nunes, 266 – Vila Isabel, Rio de Janeiro
18h às 1h, no segundo andar do bar
Quem dar um pulo lá, ganha abraço 🙂
