04. Terra embaixo das unhas

Dias atrás eu mandei mensagem para o João dizendo que não achava que ia continuar a ficar com ele porque estou sem cabeça, sem tempo, um pouco sem vontade e que as últimas duas vezes que estivemos juntos me veio esse pensamento no meio do sexo de “que que eu tô fazendo aqui? eu devia estar em casa desenhando ou escrevendo”.

Eu mudei.

Falei com seis amigos próximos sobre um determinado assunto, comuniquei o que tinha feito e como me sentia. Três deles não emitiram opinião ou disseram que não são capazes de julgar o assunto. Outros três se opuseram quase que imediatamente, preocupados com medo justificado de que eu me machuque de novo.

Não pude dizer que não vou me machucar, mas afirmei que vou sobreviver. Minha melhor amiga falou que “ele não me merece”. Eu também não sei se o parceiro dela a merece. Faz parte de amar muito alguém, achar que nada é bom o suficiente para a pessoa que a gente ama? Deve ser. Me disseram o quanto eu sou uma pessoa incrível, quantas coisas boas existem e estão por vir na minha vida. Eu falei que eu sei. Eu sou a melhor pessoa que eu conheço. Mas o que isso tem a ver com assumir o que eu quero e as consequências disso?

Eu mudei.

Dormi duas horas e meia na noite anterior a última sessão de análise, cheguei lá anunciando o meu estado físico e quando ele perguntou “mas por que você acha que as pessoas te procuram pra conselhos, julgam que você é uma pessoa bem resolvida ou madura, o que você desenha ou escreve que você acha que pode transmitir isso?”, eu encostei a cabeça na parede por um tempo incrédula, ri e falei: “porra, eu não sei. você sabe que eu não tenho capacidade cognitiva hoje pra responder uma pergunta assim, meu deus do céu”.

Eu mudei.

Fiquem tranquilos: o mundo não vai acabar. Ao mesmo tempo todo dia um mundo acaba para alguém em algum lugar. Faz parte da natureza dos mundos conterem infinitos fins-do-mundo neles. Faz parte da vida a gente ver coisas morrendo, julgá-las a pena capital, executar com as próprias mãos, um ato de misericórdia às vezes, enterrar o cadáver no meio da tempestade para depois desenterrar quando fizer sol e o cheiro tiver sumido.

A minha mãe morreu para mim algumas vezes. A vez que ela falou que eu era uma puta porque pulei de um namoro pra outro, a vez que hackearam meu computador, divulgaram foto nua minha e ela acreditou que eu tinha enviado por aí, a vez que eu fugi de casa e dormi algumas semanas na casa do meu pai, quando ela se mudou para me deixar morando sozinha por dois anos na casa em que eu cresci, quando ela voltou para essa mesma casa com um marido. Cada vez eu desenterrei uma mãe diferente da anterior. 

Eu também enterrei meu pai várias vezes e o problema foi que toda vez que eu desenterrei ele continuava igual ao que era antes, irreconhecível.

Eu mudei.

Não desse jeito que a gente vai mudando aos poucos, que a gente enxerga como uma coisa chegou a outra, faz as conexões de causa-efeito e diz “ah, sim, entendo”. Nem desse jeito como a gente anuncia que vai parar um hábito, começar outro e persiste na tarefa dia após dia.

Não é uma mudança no que eu faço ou no que eu penso. É da maneira que eu sinto.

Antes eu era honesta com quem eu me relacionava por princípios, porque eu queria ser a pessoa correta da situação, fazer as coisas certas, merecer o que eu almejo e receber algum reconhecimento. Agora é só porque é isso que eu tenho a oferecer. Sem filtro, sem regra, sem esperar nada.

Quando me distraio e olho para quem eu fui há um ano atrás, existe esse impulso constrangedor de checar se tem terra embaixo das minhas unhas.

É claro que todo mundo gostava de mim, é claro que consegui tantos amigos e tive tantos relacionamentos. Eu fiz tanto esforço para ser boa e nunca estar sozinha. Qualquer um no meu lugar teria tido êxito igual.

Acontece que eu mudei.

 

***

[Notas de rodapé]
1. Em dezembro, fiz na firma como brinde de final de ano um marcador de página de papel com sementes de manjericão. A ideia era picotar quando quisesse e plantar as sementes. Escolhi a de manjericão porque a internet disse que era uma mais rápidas para começar a brotar. Minha chefe plantou em dezembro e estávamos ansiosamente a espera. Passou um mês e nada. Ia fazer dois meses por agora, quando já achamos que fomos enganados e que elas nunca nasceriam, começou a brotar. 🙂

2. Fui comprar esse livro que ninguém dá moral (meio auto-ajuda e tal) mas quando li há uns três anos atrás gostei bastante, então resolvi dar de presente a uma amiga. Abri para folhear na fila do caixa e dei de cara com isso:

O engraçado é que a autora não fala nada do que eu disse no primeiro texto dessa newsletter, não fala desse termo específico, da origem ou significado dele, menciona como uma fala do Jack na série 30 Rock em um diálogo sobre a função da personagem Liz em um mundo pós apocalíptico. Achei hilário.

3. Sei que esse texto foi diferente dos outros, estou improvisando. Obrigada por me ler, obrigada por escrever de volta. Tomei um fôlego para responder quem mandou na última e em breve chega. Que privilégio tem sido isso.