“Fevereiro é o mês mais curto do ano, então se você tiver um mês miserável, tente agendá-lo para Fevereiro”.
― Lemony Snicket
No último texto fui surpreendida por replies, recurso que eu esqueci que existia (é só literalmente responder o e-mail gente, vem falar oi). Mais de sessenta pessoas se inscreveram indicadas por outras. Antes eram pouco menos de vinte. Obrigada todo mundo.
A parte fácil de falar é o quanto fico grata e animada que tanta gente se interesse a ler o que eu escrevo na suas caixas de e-mail. A difícil é assumir que isso também me causa um leve pânico. Estou aqui escrevendo sobre a minha vida, sobre o que eu sinto, faço e penso para várias pessoas desconhecidas.
Isso não é exatamente algo novo para mim. Quando comecei a publicar minhas ilustrações me expunha com a tranquilidade de quem tinha 200 seguidores no Facebook, a maioria amigos meus. Durou pouco tempo. Com dois meses de página uma arte viralizou. 200 viraram 2000. Passei uma madrugada em claro acompanhando em tempo real os comentários e compartilhamentos, como as pessoas se identificavam, se apropriavam e interpretavam à sua maneira coisas que eu julgava tão íntimas, tão minhas.
Foi um processo maravilhoso. Aprendi muito sobre mim quando achei que não merecia essa visibilidade toda. Quando respondi comentários para explicar o que eu estava querendo dizer em uma ilustração. Quando recebi mensagens de pessoas que choraram com uma arte minha.
Essa sensação que tanto tive na adolescência de ninguém-nunca-sofreu-isso-que-eu-estou-passando acabou. Maturidade é assim? Reconfortante e ao mesmo tempo ridículo saber que tudo que eu vivo é extremamente trivial. O que não torna nada disso menos importante. Na verdade, talvez torne mais importante ainda.
Eu me acostumei a ficar vulnerável com a certeza de que tentar se proteger de qualquer coisa é inútil para evitar sofrimento. Também acho que a única forma de criar vínculos verdadeiros é baixando a guarda.
Mesmo assim eu sempre sinto medo.
A arte que viralizou “se tu soubesse tudo o que eu adubei usando as merdas que você me disse”; na legenda completava: “tu nem pediria desculpas”.
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Um dos meus lemas pessoais é honestidade > originalidade.
Temos muito tempo de civilização e eu não tenho a pretensão de falar nada que seja inédito. Tudo que eu tenho a dizer alguém já disse antes. Como ainda não escutaram direito, sigo repetindo do meu jeito.
Teve essa vez que eu comecei a ver vídeos sobre body positive e ativismo gordo no Youtube e assisti especialmente os da Beta Boechat. Eu estava numa jornada pessoal de começar a gostar de partes do meu corpo que passei a minha vida detestando porque todo mundo me dizia que era para detestá-las.
Então após ver esses vídeos, fiz um desenho com uma frase que dizia “ninguém te ensina a se amar” e na legenda “… você vai ter que aprender sozinho”.
Não seguia Beta no Instagram, seja lá como foi, ela encontrou essa arte e curtiu.
Minutos depois eu mandei uma mensagem pra ela:
“Sem os teus vídeos, essa ilustração que você curtiu nem teria existido. Muito obrigada.”
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Uma coisa que me incomoda no ativismo online, especialmente o feminista, é como somos coagidas a expor momentos traumáticos das nossas vidas em uma tentativa desesperada de sensibilização do outro lado para o nosso sofrimento.
Tem inúmeras estatísticas da violência sexual, tem notícias de feminicídio todo dia, pesquisas e dados. O suficiente para convencer que a violência contra as mulheres é algo real e que acontece com todas, em diversos níveis. Ainda assim, de tempos em tempos nós transformamos nossas timelines em feridas abertas.
#EuTambém preciso falar de quando fui estuprada pelo meu namorado, com quem eu continuei anos depois do ocorrido, para ser questionada em detalhes sobre a validade dessa declaração?
Meu relato é um dos milhares de uma hashtag e a afirmação do que aconteceu nunca dará conta do impacto que isso teve na minha vida. Não acho justo falar disso sem falar dos meses que não consegui mais dormir nua depois de ter percebido o que aconteceu comigo. Ou da experiência de achar que fiquei frígida, sempre assumindo culpa ao invés de perceber que uma pessoa que eu amava e confiava foi realmente capaz de violar a autonomia do meu corpo.
Essas campanhas online para mim são pouco eficazes, performativas e dolorosas.
Dolorosas porque nos obrigam a ler e escrever sobre assuntos traumáticos e se formos incapazes de fazer isso nos sentimos constrangidas e menos militantes. Já quem se expõe, abre espaço para questionamentos e o julgamento se é uma vítima válida ou se mereceu.
Performativas, não porque são histórias fabricadas, mas sim porque exigem um trabalho emocional e pedagógico das vítimas e nada dos agressores.
Pouco eficazes porque cá estamos nós, ainda.
A vulnerabilidade coagida é uma outra violência.
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“Sempre que surge a necessidade de alguma pretensão de comunicação, aqueles que lucram com nossa opressão nos chamam para compartilharmos nosso conhecimento com eles. Em outras palavras, isso significa que é do oprimido a responsabilidade de ensinar aos opressores seus erros. Eu sou responsável por educar os professores que depreciam a cultura dos meus filhos no colégio. Das pessoas negras e das que habitam países em desenvolvimento, espera-se que sejam responsáveis por educar a população branca afim de que reconheçam a nossa humanidade. Das mulheres, espera-se que eduquem os homens. Das lésbicas e dos gays que eduquem o mundo heterossexual. Os opressores conservam sua posição e ignoram a responsabilidade de seus próprios atos. Isso é uma drenagem de energia constante que, provavelmente, seria melhor usada na redefinição de nosso próprio ser e na construção realista dos meios para modificar o presente e construir o futuro.”
― Audre Lorde, Sister Outsider: Essays and Speeches (Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference)
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Toda vez antes de transar com um homem, eu conto que fui estuprada. Não estabeleci uma regra consciente sobre isso, mas de alguma maneira é assim que tem funcionado. Acho que parte de mim quer avisar que já passei por isso e que não vou permitir que aconteça de novo. Outra parte busca reafirmar que essa transa, mesmo que casual, é um ato de confiança.
Mas parando para pensar criticamente sobre, não acho que nenhum dos homens com quem transei nos últimos anos entendeu qualquer um desses dois intuitos. Provavelmente só acharam que eu estava compartilhando algo muito íntimo de maneira meio aleatória.
No início do meu namoro anterior, teve uma vez que a gente estava transando e eu lembrei do estupro. Eu estava de quatro encarando a parede e quando a memória atravessou a minha mente, me senti violada de novo.
Saí da posição, interrompi o sexo, rolei pro lado e comecei a chorar.
Ele nunca me perguntou o que aconteceu e supus que foi porque já imaginava o que tinha sido. O esquisito para mim foi que imaginando que foi a lembrança do que me aconteceu, ele ainda não tenha me dito uma palavra.
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“O primeiro ato de violência que o patriarcado demanda dos homens não é a violência contra as mulheres. Ao invés disso, o patriarcado exige que todos os homens se engajem em atos de auto-mutilação psíquica, em que eles matam partes emocionais deles mesmos. Se um indivíduo não é bem sucedido em emocionalmente se cortar, pode contar que outros homens patriarcais irão fazer rituais para atacar sua auto-estima.”
― bell hooks, The Will to Change
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Na mitologia grega, Cassandra era princesa de Troia. Ao passar uma noite no Templo do Deus Apolo, ela recebeu o dom de prever o futuro. Apolo ensinou sobre a arte da profecia como forma de seduzi-la. Cassandra aceitou Apolo como professor mas não como amante. Com a recusa aos avanços sexuais dele, Apolo se sentiu insultado e a puniu.
Condenou Cassandra de maneira que qualquer pessoa que ouvisse suas profecias não acreditaria nela e pensaria que ela estava mentindo. Durante os acontecimentos da guerra de Troia ela tenta alertar todos em vão e sempre é ignorada.
Estou no meio de um quadrinho longo que associa o mito de Cassandra no nosso contexto atual onde toda mulher que resolve acusar um homem de assédio sexual é imediatamente desacreditada. Não basta ser um processo trabalhoso e solitário por si só esse de fazer quadrinho, eu ainda escolhi um tema particularmente doloroso. Ensaiei abrir mão do projeto inúmeras vezes, até assumir para mim mesma que é a minha maneira de falar sobre o que aconteceu comigo.
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“Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não irá te proteger. Mas para cada palavra real dita, para cada tentativa que eu já fiz de falar essas verdades que ainda estou procurando, eu tenho feito contato com outras mulheres enquanto examinamos palavras para encaixar num mundo em que todas acreditamos, superando nossas diferenças.”
― Audre Lorde, Sister Outsider: Essays and Speeches (The Transformation of Silence into Language and Action)
Notas de rodapé:
- Todas as ilustrações são minhas e podem ser encontradas no meu Instagram. As três primeiras são de dois anos atrás, foram colocadas aqui pelo contexto do que estou contando mas hoje mudaria essas frases. Fico pensando se a primeira não é uma glorificação estúpida do sofrimento e a segunda uma pregação meio inócua sobre auto-amor. Isso tudo pode ficar pra outro texto mas fica registrado o meu leve incômodo.
- Não consegui confirmar se a citação do Lemony Snicket é dele mesmo, porque a internet diz o seu nome como autor mas nunca em qual livro exatamente essa frase estaria. Talvez seja da Clarice Lispector.
- Vamos as citações originais e links para pdfs das mesmas, mas antes gostaria de dizer que ler Audre Lorde e bell hooks tem mudado a minha vida. Faz um tempo que comecei e toda vez que leio, sempre mexem com as estruturas dentro da minha cabeça.”Whenever the need for some pretense of communication arises, those who profit from our oppression call upon us to, share our knowledge with them. In other words, it is the responsibility of the oppressed to teach the oppressors their mistakes. I am responsible for educating teachers who dismiss my children’s culture in school. Black and Third World people are expected to educate white people as to our humanity. Women are expected to educate men. Lesbians and gay men are expected to educate the heterosexual world. The oppressors maintain their position and evade responsibility for their own actions. There is a constant drain of energy which might be better used in redefining ourselves and devising realistic scenarios for altering the present and constructing the future”― Audre Lorde, Sister Outsider: Essays and Speeches (Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference) “The first act of violence that patriarchy demands of males is not violence toward women. Instead patriarchy demands of all males that they engage in acts of psychic self-mutilation, that they kill off the emotional parts of themselves. If an individual is not successful in emotionally crippling himself, he can count on patriarchal men to enact rituals of power that will assault his self-esteem.”― bell hooks, The Will to Change “My silences had not protected me. Your silence will not protect you. But for every real word spoken, for every attempt I had ever made to speak those truths for which I am still seeking, I had made contact with other women while we examined the words to fit a world in which we all believed, bridging our differences.”― Audre Lorde, Sister Outsider: Essays and Speeches (The Transformation of Silence into Language and Action)
