“Às vezes me perguntava qual seria a utilidade das artes. A melhor tentativa que consegui foi o que chamo de teoria canário-na-mina-de-carvão. Essa teoria diz que artistas são úteis para a sociedade porque eles são muito sensíveis. Eles são super-sensíveis. Se ajoelham como canários intoxicados em minas de carvão muito antes dos tipos robustos perceberem que existe algum perigo próximo.”
— Kurt Vonnegut (tradução livre)¹
No século XIX, trabalhadores em minas utilizavam gaiolas com canários penduradas nas paredes como um dispositivo de aviso: quando os pássaros parassem de cantar desfalecidos indicariam a presença de gases venenosos antes que os mineiros pudessem sentir seus efeitos.² Com o silêncio de seu canto, havia a necessidade da fuga imediata.
A expressão em inglês é usada para falar sobre qualquer coisa, principalmente organismo vivo, que em casos de morte ou angústia fornece um sinal de alerta.
Meu avô passou muitos anos numa cadeira de rodas, angustiado de nunca voltar a andar apesar de inúmeras cirurgias e sessões de fisioterapia. Para muitas pessoas portadoras de deficiência a cadeira de rodas oferece uma possibilidade de autonomia, mas para ele sempre foi uma gaiola. Sem conseguir fazer qualquer movimento gritava, reclamava, choramingava durante noites inteiras. Pedia para ser virado na cama pro outro lado. Pedia para fazer xixi. Pedia para coçarmos suas costas. Pedia tudo pois não podia fazer nada. Dormir lá era um teste de resistência.
Um dia ele morreu e com a morte dele veio o silêncio.
Anos depois minha avó criou o costume de ter canários como ‘animal de estimação’, que pontualmente às seis da manhã cantavam desesperadamente dentro das gaiolas sozinhos. Seu canto competia com o rádio tocando a missa católica. Um canto fino e intermitente. Era em parte irritante, em parte triste.
O último dos canários morreu de uma maneira brutal: um rato o atacou durante a noite por entre as grades da gaiola. Fiquei por muito tempo atormentada pela ideia dessa morte, a imagem dele voando desesperado lá dentro sem a menor possibilidade de escapatória.
Tem um trecho no conto ‘ Para uma avenca partindo’ do Caio Fernando Abreu que bate em mim desde a primeira vez que eu li, adolescente. Foi também o primeiro conto que li dele e me iniciou numa obsessão pessoal pelo autor antes que a internet se apropriasse da sua figura para veicular frases sem contexto por aí. Compartilho com vocês:
“você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende?” ³
Se algum dia eu quiser ter uma ideia de como meu avô se sentia em 1940, um nordestino vindo do Rio Grande do Norte com três empregos no Rio de Janeiro, andando sobre suas duas pernas e sustentando uma família de cinco filhos não vai adiantar ler sobre economia, história ou política. Para ter uma mera pista de como ele poderia ter se sentido naquela época perante a tudo que acontecia, eu terei que ir atrás dos artistas.
O que eles estavam escrevendo, cantando e pintando naquele momento? Eles estavam otimistas ou deprimidos?
Estou resignada que cantar desvairadamente provavelmente não servirá para impedir as coisas que o atual governo de extrema-direita pretende fazer. Minha produção artística, seja em qual forma vier, não tem uma utilidade mensurável numa revolução.
A função social do artista (ainda) não é compreendida nem por nós mesmos e isso atrapalha sua mínima eficácia. Estamos alertando perigo para pessoas que não escutam inebriadas pelo gás tóxico que já se espalhou por aqui.
A gaiola existe. Talvez o rato também exista. Mas quando não existirem mais, ainda restará o registro do que nós sentimos.
Esse é o meu.
[Notas de rodapé]
¹ “I sometimes wondered what the use of any of the arts was. The best thing I could come up with was what I call the canary in the coal mine theory of the arts. This theory says that artists are useful to society because they are so sensitive. They are super-sensitive. They keel over like canaries in poison coal mines long before more robust types realize that there is any danger whatsoever.” – Kurt Vonnegut
² Os canários não morriam sempre no seu trabalho dentro das minas, havia um dispositivo nas gaiolas para fornecer oxigênio assim que eles desmaiavam [fonte]
³ O conto Para uma avenca partindo de Caio F. pode ser lido aqui
